Inaugurado o espaço para os leitores com este conto de autoria do leitor Caique Giovannini.
O céu estava cinza por causa da fumaça das chamas que engoliam as casas. Ouvia-se por toda parte o grito das mulheres sendo capturadas, homens agonizando antes de ir ao grande salão de Odin, o som de metal batendo contra metal, o choro das crianças ao ver seus parentes mortos e tudo isso acompanhado pela marcha fúnebre tocada pelo fogo que ardia por toda parte ao nosso redor.
Nós havíamos lutado bem, fomos pegos de surpresa às primeiras luzes da manhã, mas nos recuperamos rápido e conseguimos repelir os atacantes por um tempo. Mas, quanto mais suportávamos o ataque ao portão leste, pude ver do alto da plataforma da paliçada que não tínhamos a mesma sorte no portão sul e foi nesse momento que vi a nossa ruína. Foi questão de segundos. Pulei da plataforma que estávamos e antes de correr para o outro portão, vi os primeiros guerreiros inimigos dentro da cidadela e as primeiras casas sendo incendiadas.
Enquanto o inimigo vinha como uma enchente através do portão sul, já completamente dominado, gritei para meus homens e uma pequena parede de escudos se formou, porque ainda precisávamos impelir os atacantes no portão leste atrás de nós.
Os inimigos que chegavam nos atacavam de forma louca e desorganizada, talvez não soubessem lutar em uma parede de escudos ou talvez estivessem confiantes demais em sua vitória que acreditavam não ser preciso formar uma para nos sobrepujar, e foi por isso que conseguimos por um tempo impedir o avanço dos invasores. E matamos muitos guerreiros. Mesmo sofrendo uma grande baixa em nossa parede de escudos, eles continuavam a vir em nossa direção de forma desorganizada, porém furiosa. Comecei a achar que teríamos chance de vencê-los, e começamos a avançar devagar, e a cada passo minha confiança crescia e eu gritava para meus homens e companheiros de batalha, incentivando-os enquanto matávamos cada vez mais, e a confiança deles também crescia. Estava quase vendo nossa vitória, e agora, percebo o quanto fui tolo em esquecer que atrás de nós também estava sendo travada uma batalha, e essa, nós perdíamos miseravelmente. Não demorou para termos inimigos à nossas costas. Nossa parede de escudos começava a se dissolver assim como a minha ingenuidade ao achar que poderíamos tê-los derrotado. Vi meus homens tombarem um a um enquanto mais casas eram incendiadas e vi a primeira mulher ser arrancada de sua casa. Ela segurava um bebê que chorava descontroladamente, enquanto a lâmina de uma espada batia na lateral do meu ombro esquerdo partindo a cota de malha, mas sem causar muito estrago. Girei minha espada cortando a garganta daquele homem e em seguida cravei sua lâmina nas costas de outro, que lutava com um dos meus. Deixei-a cravada lá enquanto pegava um grande machado de lâmina grossa das mãos de um guerreiro morto e ia em direção a um homem ruivo de cabelos longos e barba desgrenhada manchada com sangue. Ele era grande, pouco maior que eu, e não usava elmo, mas empunhava uma espada grande de duas mãos e matava com fúria extrema. Gritei para ele enquanto ia a sua direção e soltava o escudo para poder segurar o machado com as duas mãos, e ele me encarou de volta, aceitando meu desafio. Os homens que lutavam a seu lado recuaram, para que ele pudesse me enfrentar sozinho, e então ele veio rápido em minha direção enquanto gritava. Sua espada raspou o topo da minha cabeça enquanto eu me abaixava, mas a força do golpe foi tanta que eu me desequilibrei e cai de costas e meu elmo fora jogado para longe, e a lâmina já vinha descendo na minha direção enquanto rolava para a direita pegando o grande machado enquanto me levantava. Girei-o em sua direção, mas ele recuou de modo que a cota de malha rompeu em seu peito, mas sem causar nenhum ferimento. Ele era rápido, e sua espada vinha novamente para mim e eu soube que não ia ser rápido o suficiente para aparar seu golpe com o cabo da minha arma, então enquanto sua espada ainda estava descendo sobre mim deixando seu peito aberto, cravei a lâmina larga do meu machado na parte onde sua malha havia se rompido, mas isso não impediu que ele me acertasse com seu golpe arrasador.
Olhamo-nos imóveis por um instante, já que estávamos presos um à lâmina do outro, e no instante seguinte ele caiu para trás fazendo o cabo do machado deslizar das minhas mãos, ao mesmo tempo em que puxava sua espada arrancando-a do meu ombro direito. Ele golpeara sobre meu ombro com tanta força que sua lâmina havia cravado quase até a metade do meu peito. Caí de joelhos ouvindo meu adversário gemer até emudecer. Peguei uma espada que estava próxima a mim, pois sabia que a minha hora havia chegado, e mesmo tendo minha morte em batalha, precisaria estar empunhando uma arma para ser bem recebido no grande salão dos deuses.
E então, todo aquele som da guerra, gritos, gemidos, armas se chocando, carne sendo perfurada e o fogo engolindo o que há algumas horas chamávamos de lar, desapareceu. Ficou tudo num silêncio súbito. Eu estava de joelhos, com sangue por todo o corpo e um corte profundamente aberto no ombro e tentava segurar o mais forte que conseguia aquela espada quando olhei para o céu, cinzento por causa da fumaça, e vi os corvos, voando por sobre o campo de batalha. Mas entre eles haviam asas grandes demais para serem apenas corvos, asas que pareciam cada vez maiores na medida em que se aproximavam da terra. Foi quando baixei a cabeça para olhar uma última vez para o campo de batalha, e com a minha visão já embaçada eu vi, diante de mim, uma bela mulher de longos cabelos dourados e tão luminosos como o ouro, trajando uma cota de malha tão justa que parecia agarrado a própria pele. Ela estendeu a mão e me levantou, apoiando meu braço sobre seu ombro, e me levou para longe daquele caos silencioso, e enquanto me afastava eu vi outras mulheres como aquela que me carregava, caminhando entre os mortos no campo de batalha, algumas carregando outros homens e outras olhando ao redor, como se escolhessem, dentre os cadáveres dos guerreiros, algum que fosse digno de ser levado por elas.
Eu estava feliz, pois sabia para onde estava sendo levado, e apesar de ter perdido aquela batalha para nosso inimigo, eu sabia que tinha lutado bem e sabia que tinha morrido bem, e que agora festejaria ao lado dos deuses e de meus amigos e companheiros mortos em batalha, e alguns de meus antigos inimigos também, que estão me esperando para bebermos e lutarmos enquanto esperamos a grande e decisiva batalha em que lutaremos ao lado dos deuses, e que levará ao final dos tempos.
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